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Sobre maternar



"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria". Essa afirmativa tão ácida abre um dos mais conhecidos romances do nosso genial Machado de Assis. Assim como Brás Cubas, também não tive filhos, mas não trouxe para a vida esse alívio pessimista do personagem.

Não pude ter filhos e deixei que assim a natureza se fizesse apesar das possibilidades que a ciência oferece para a reversão do estado natural das coisas. Não tive filhos e isso não me causou mal-estar, mesmo alguns médicos insistindo para que eu procriasse sob pena de me arrepender no futuro. Da mesma forma, ao menos duas terapeutas tentaram cavar nas profundezas da minha mente alguma resposta para uma conformidade tão plena com a maternidade negada pela vida.

Nem mesmo no dia das mães eu me sentia incomodada, apesar da publicidade se esforçar para isso. A única data do ano que me gerava incômado era o natal e eu não entendia o porquê desse evento sempre me fazer cair num inexplicável desânimo depressivo. Mas, há pouco anos, conversando sobre isso, tive um insigth e descobri o motivo de minha angústia anual à data do nascimento do menino Jesus. Como a descoberta de algo que parecia estar soterrado há séculos, eu explodi em um tom abafado e delirante: Natal é data de família e eu não construí uma.

As lágrimas vieram como se quisessem inundar aquela noite fatídica. Meu companheiro tentava, veementemente, me consolar. Sem sucesso, usou de sua habitual racionalidade: "Amor, natais com crianças correndo para abrir presentes do Papai-noel e parentes comendo rabanada, esse natal tradiconal foi inventado pela Coca-cola". Aquelas palavras vieram num misto de decepção e bálsamo de lucidez. Então, naquele ano, decidi fazer a festa natalina em casa com os amigos e não o contrário, como sempre, pegando carona nas famílias alheias. Foi libertador!

Ao contar esse episódio a uma amiga da sociologia, ela reiterou com um " tudo isso não passa de contrução social" e completou dizendo que eu maternava. Usou o termo referindo-se ao zelo que tenho com minha mãe e irmã, ambas muito dependentes dos meus cuidados. Lembrei também que, por muitas vezes, eu dizia em sala de aula que Deus não me deu filhos, mas me deu alunos. Ela tinha razão. Eu maternava!

É fato que jamais provarei dos mistérios e sentimentos que somente as mães detêm, mas isso não me gera nenhum transtorno, tampouco frustração, pois entendi que eu posso sim cuidar, acarinhar, proteger, amparar, alimentar, ouvir, aconselhar - ações derivadas do amor maternal. Óbvio que não é a mesma coisa, mas ao contrário do niilismo de Brás Cubas, preferi deixar como legado meu amor a quem pudesse e quisesse receber: mãe, irmã, afilhados, alunos,amigos, as crianças de uma creche etc...

Penso que mulheres que optaram por uma vida sem filhos têm como missão espalhar amor, pois aquele tal sentimento infinito e devotado que seria direcionado a um rebento pode ser repartido por uma dezena de almas agregadas. Não se trata, insisto, de preencher lacunas ou buscar sublimação. Creio ser questão de escolha e como tal, também exige muita responsabilidade.

Há pouquíssimos dias, uma nova aluna, com claro problema de retardo mental, escreveu-me um bilhete, quando li tive que conter o sentimento imapctante de surpresa e assombro: Uma moça de uns 18 anos,escreveu um textinho idêntico àqueles do maternal, dizendo já na terceira linha: "posso te chamar de mãe? Perdi meus pais quando eu era pequena (...) Te amo para sempre". Com o coração partido em pedacinhos, respondi com outro bilhete, pois ela assim pediu. Nele fui taxativa: prefiro que me chame de professora. Maternar tem dessas, temos também que impor limites para que a vida siga seu curso natural.




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