Hoje estava num leito da UTI avaliando uma paciente, quando olhei pra fora desses janelões e me deparei com essa vista - uma luz linda, alaranjada, de meio de tarde de outono. Mas ao fazer esta gravação, algo me chamou a atenção. O que se escuta é o som do ventilador mecânico da minha paciente de 36 anos, sem doenças prévias, que está intubada por Covid e lutando pela vida. É o som do aparelho trabalhando para fazer entrar ar em seus pulmões e depois deixar sair. E é um som tão habitual para mim nos meus dias e meu ouvido se tornou tão apurado para isso, que consigo identificar algumas alterações só pelo tipo de som que o ventilador produz.
E é tão discrepante a imagem do lado de fora desta janela com o lado de dentro, que meus pensamentos vão além da onde meus olhos alcançam.
Lá fora o céu é azul, vejo as nuvens brancas e os raios de Sol. Aqui dentro é a luz artificial de 3000Kelvin e o teto pintado de bege.
Lá fora sinto o calor do Sol aquecendo meu corpo. Aqui dentro é ar condicionado sempre na mesma temperatura.
Lá fora ouço o canto dos pássaros, o som das folhas das árvores balançando com o vento, e até buzina de carro. Aqui dentro é o som do ventilador mecânico funcionando e alguns alarmes de vez em quando dos inúmeros equipamentos.
Lá fora a vida acontece – vejo a moça na varanda passando pano no vidro, o senhor no sofá de seu apartamento fazendo carinho no gato em seu colo. Aqui dentro a vida pulsa – luta bravamente a batalha travada contra o inexorável destino final de cada um de nós.
Eu escolho me cuidar e proteger diariamente deste vírus porque quero estar do lado de fora dessa janela por muitos anos ainda, aproveitando a natureza e os pores-do-Sol que forem pintados de colorido a cada dia.
Ao mesmo tempo, para quem adentra o lado de cá da janela por uma fatalidade do destino, saiba que aqui dentro tem também muito cuidado. Atenção. Acolhimento. Disposição. Amor. Empenho. Carinho. Aqui dentro tem uma equipe unida dedicada dia e noite a cuidar de você. Com todo o zelo que uma equipe multidisciplinar é capaz de demonstrar.
Essa semana, dando o boletim médico para o familiar de um paciente internado comigo na UTI, ele me fez uma pergunta inusitada no meio das minhas informações:
- Dra, mas qual o fluxo de ar que nós que não estamos intubados respiramos?
Estranhei a exatidão de detalhes que a pergunta exigia como resposta, porque nos boletins médicos eu nunca falo de valores de exames ou de parâmetros do ventilador, e sim interpreto para a família como está o estado geral do paciente, como evoluiu de ontem para hoje, sem focar nos valores numéricos e sim no que eles significam.
Em um paciente intubado, eu controlo tudo em seu ventilador. Escolho o fluxo de ar, a porcentagem de oxigênio, o volume de ar que entra a cada ventilação, a frequência respiratória, e inclusive quanto de pressão permanecerá dentro dos pulmões ao fim de uma expiração. Tantos detalhes a regular! E quem está cuidando do paciente é que determina cada um desses parâmetros. Cada um escolhido com cautela e com um determinado propósito.
Mas a resposta à pergunta que o familiar me fez é muito simples. Como bem aprendi em fisiologia respiratória, alguns conceitos de física aplicados à medicina e com meu professor de Ventilação Mecânica Alexandre Marini Ísola, o fluxo de ar que nós respiramos em ar ambiente é livre. Livre. Por uma questão semântica, não é só livre no sentido do ar entrar na velocidade que nosso organismo deseja. Mas livre. Livre de aparelhos. Livre para respirar na profundidade que a gente quiser. Livre para suspirar de amor. Livre para respirar devagar durante um sono tranquilo. Livre para sentir a respiração afobada por uma emoção muito forte, às vezes até em descompasso com o coração que está pulando dentro do peito.
Livre. Para respirar do jeito que o corpo pedir. Livre para sentir. Livre para expressar as emoções também na forma de respirar.
Enquanto escrevo este texto, encho meus pulmões de ar e suspiro profundo. Como é bom!
E qual meu papel neste último 1 ano e 3 meses senão tentar devolver esta liberdade a todos aqueles de quem eu cuido?
Giovanna Zanata
Médica Intensivista em São Paulo Ex-aluna, amiga querida, alma de luz.
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